sexta-feira, 26 de abril de 2013

Gênero: uma construção social


Utilizo (quando tenho tempo rs) esse espaço virtual geralmente para auxiliar no processo pessoal de reflexão sobre determinados temas. Ao escrever, organizo ideias, e ao ouvir opiniões sobre o que escrevi, tenho a oportunidade de relacionar minha visão com outras. Sabendo que não existem verdades absolutas, esse confronto de olhares tende a ser bem interessante.
O texto que vou colocar hoje é fruto de uma reflexão que surgiu em minha mente através dos debates no programa Vulva Fúcsia, do qual faço parte. Ainda mais profundamente, as ideias apresentadas no texto começaram a ser formuladas no trabalho intitulado “Vulva Fúcsia: pedagogizando relações de gênero e sexualidade através de recursos midiáticos”, apresentado no X ENUDS. E futuramente as ideias que surgiram aqui vão contribuir na minha monografia, que já deveria estar em andamento.

Adaptação cotidiana

             Existem determinadas características que nós, sujeitos, possuímos e que raramente passam por uma consciência crítica. São aspectos encrustados nos atravessamentos sociais, e que fazem parte do processo conhecido como “subjetividade”, onde aquilo que somos/acreditamos ser é construído. Assim, raramente nos perguntamos por que sentimos isso ou aquilo, ou mesmo acreditamos serem fatores naturais, até mesmo biológicos os responsáveis por algumas de nossas formas de ser.
             O gênero está preso a essa concepção. Raramente questionamos as formas com que a sociedade se organiza em relação ao binarismo masculino/feminino. Nos parece algo muito normal que uma mulher aja de determinada maneira, o homem sinta determinados sentimentos. Inclusive questionar essa organização parece algo como ir contra a natureza. O fato é que na construção de gênero existe muito pouco ou nada de natural. Todas as leis que determinam as formas com que um sujeito se comporta estão amarradas a construções sociais. Não existe nada em nossa biologia que determine que uma mulher tenda a gostar mais de rosa, ou um homem de azul. Nossos comportamentos são definidos de acordo com o que a sociedade construiu ao longo do tempo, e todo esse aprendizado é dado desde muito cedo. Talvez daí venha essa falsa compreensão natural do gênero. Afinal, não tenho consciência de em que momento foi nos ensinado que mulher deve cruzar as pernas e homem deve cortar o cabelo curto. São ensinamentos passados através de experiência, raramente por lições.
              Usei no parágrafo anterior a palavra lei, pra determinar as imposições comportamentais. Pensando bem, é uma boa expressão para esse caso, se formos pensar que em nossa sociedade judiciária, lei é aquilo
que, quando desrespeitada, tem como consequência uma punição. Podemos não ter consciência de quando ou como fomos moldados dentro do gênero esperado devido à nossa composição biológica, porém temos certa clareza de que são regras, e que devem ser seguidas, principalmente porque somos confrontados com modelos marginais desse sistema. Se um menino age de forma mais feminina, logo é repreendido, não apenas pelos adultos, mas também pelos próprios colegas. Existem aí várias formas de aprendizado, mas a meu ver a principal delas é o aprendizado desse menino sobre a forma correta e incorreta de se comportar. Algo que irá ter significativa representação dentro do olhar dele sobre a sociedade.
                Essa introdução pretende chegar a um ponto principal. Algo que chamo, como forma de organizar a ideia em uma expressão, de congruência total de gênero. Vou recorrer agora a um trecho do trabalho do qual falei no início da postagem:
Espera-se que uma pessoa que nasceu com um pênis tenha identidade de gênero masculina e orientação sexual voltada para o sexo oposto apenas (heterossexual). Da mesma forma, espera-se que a pessoa nascida com uma vulva se entenda em uma identidade de gênero feminina e sinta atração por homens. O que vemos hoje é que estas “caixinhas” não são suficientes para abranger toda a pluralidade social. Ainda assim, aqueles que fogem a um desses quesitos são marginalizados. Logo, se você nasceu com um pênis e se identifica com o gênero masculino, você só será aceito caso tenha orientação sexual voltada para pessoas com vulva e que se identifiquem com o gênero feminino. Caso sua orientação sexual seja voltada para sujeitos que possuem o mesmo órgão genital que você, a discriminação estará presente. Outro exemplo: você tendo nascido com uma vulva, ainda que tenha desejo sexual por pessoas portadoras de pênis, caso sua identidade de gênero seja masculina você também sofrerá segregação social. Assim, chamamos a essa necessidade imposta em três níveis (órgão sexual, identidade de gênero e orientação sexual) de congruência total de gênero. Ainda que a orientação sexual e o órgão genital não exerçam ação natural sobre sua identidade de gênero, a premissa social estabelece que todos devem estar em congruência de acordo com o padrão estabelecido.”

          É preciso cuidado ao analisar as diversas nomenclaturas que povoam determinado tema. Por exemplo: falamos em orientação sexual e identidade de gênero, e reforçamos a necessidade de se compreender as singularidades de cada expressão. Essa divisão inicial torna-se importante para que se possa dar conta de uma pluralidade ainda maior. Caso não houvesse a marcação de diferença, cairíamos nas formas tradicionais de compreensão sexual, onde uma pessoa com identidade de gênero feminina necessariamente tende a sentir atração por pessoas com identidade de gênero masculinas. Sabemos que isso não corresponde à realidade. Porém, ao mesmo tempo em que é necessária a demarcação das diferenças entre as expressões, também é de suma importância compreender que estas se flexionam. Uma exerce influência sobre a outra, e as duas se relacionam.
               O principal dentro da expressão que trago “congruência total de gênero”, é compreender que existem diversas premissas sociais que pretendem resumir a uma única visão aspectos diferentes dentro de cada sujeito. Não somos apenas um órgão sexual, e menos ainda é este que decide nossos comportamentos e desejos. Ao nos compreendermos como sujeitos múltiplos, dotados de diversas esferas de expressão, passamos a nos compreender melhor como um todo. Todos os nossos aspectos se relacionam, mas não necessariamente dentro do esperado pelo modelo social ocidental/cristão que vivemos. O que o meio social pretende é resumir nossa singularidade ao reduzi-la em formas de expressão já prontas, onde apenas nos adequamos para que tudo permaneça como é.

domingo, 3 de março de 2013

Do cabelo à ponta do pé, quem tem o direito de dizer o que é bonito?


Ontem, durante um bate papo com amigxs, falamos sobre o racismo nosso de cada dia, e do quanto é difícil compreender que somos uma sociedade racista. Essa compreensão pra mim é necessária pra que a gente possa analisar nossos pensamentos e atitudes, visando uma reflexão de combate, e não para simplesmente instituir o racismo. Não se trata de aceitar o racismo como parte de nós, e sim de entender que somos criados em uma realidade racista, e que só a partir da análise de nossa prática cotidiana é que podemos mudar a situação.

O Brasil é um país que tem preconceito com o preconceito. Ouvi essa frase esses dias, mas não lembro quem foi que disse ou escreveu. Cada um pode ter sua compreensão, mas eu leio da seguinte maneira: nosso país se recusa a aceitar que tem práticas discriminatórias. Quando digo nosso país, me refiro claro as pessoas que aqui moram. Acho que isso veio do mito da democracia racial, do aclamado país de mestiços, da propaganda feita do país como um lugar onde as raças convivem pacificamente. Enfim, podem ter muitas origens, mas é um fato. Nosso pensamento tem sempre um mas.

E nessa negação, ontem surgiram algumas frases interessantes. Vou pegar uma delas pra comentar agora:

“Raramente vemos um negro bonito”

Para ir para o trabalho eu posso fazer alguns trajetos. Em um deles, passo por vários municípios da baixada fluminense (RJ). Do ônibus eu vejo a população nas ruas, andando, comendo, conversando, trabalhando, etc. Ao mesmo tempo vejo outdoors, cartazes, placas, anúncios. E o que vejo é uma tremenda contradição. Ao mesmo tempo em que na rua vemos uma maioria gigantesca de pessoas negras (sei que é impossível classificar alguém como negrx, e que existe aí uma questão de identidade cultural, mas digo em relação ao visível, ou mais especificamente à cor da pele), nas imagens de propaganda as pessoas são quase sempre brancas. Na maioria das vezes é branca, loira e dos olhos azuis. O modelo de casal do comercial de margarina ainda prevalece. Na placa do dentista, tem uma família composta por homem/mulher/criança, todos brancos e loiros, com um sorriso “perfeito”. Sei que existem exceções, onde negros também são representados, mas isso é o que são: exceções. É absurdo você ver que na maioria dos veículos de informação o padrão de beleza ainda é a pessoa branca, quando nas ruas a maioria da população é negra.
Campanha contra propaganda de alisantes
Pois bem, o que isso tem a ver com a frase que eu coloquei ali em cima? Tudo! De onde nossos padrões vem? Temos a ideia de que nossas preferências nascem conosco, são naturais. E acabamos não dando conta de que os padrões de beleza e comportamento são construídos histórica e socialmente. Nas revistas, existe um modelo de beleza sendo veiculado, e é esse modelo que nos acompanha, que constitui nossos gostos. Temos um referencial de beleza negra? Claro que temos alguns, aos poucos vemos uma mudança tímida nesse esquema. Temos mulheres negras que conseguiram ultrapassar o limite no carnaval. Aparecem em revistas durante o ano, são modelos de beleza. Mas são ainda exceções.

Um caso que ilustra esse nosso racismo é o do “mendigo gato”. Nada mais que um mendigo loiro de olhos azuis. Quantos moradores de rua existem no Brasil? Milhares, sem dúvida. Passamos por vários todos os dias. Por que de repente uma dessas pessoas chama a atenção de todo um país, que fica abismado com o fato dele morar na rua? Por que ele era branco, loiro e tinha olhos azuis. Simples. As pessoas ficaram chocadas: como pode um homem tão bonito ser mendigo? Todos os outros são esquecidos, todos os mendigos “feios” são postos de lado. Mas essa maioria de mendigos feios é branca ou negra?

Enfim, nossos padrões de beleza são racistas. E temos que levar isso à consciência crítica para estar atento e não reproduzir esse tipo de pensamento. Se hoje alguém diz que raramente vemos uma pessoa negra bonita, é porque nossa sociedade estabeleceu que o padrão de beleza é o da pessoa branca. E nós vamos levando a vida achando que o fato de acharmos geralmente pessoas brancas mais bonitas do que negras se deve a um fator natural. É gosto, e gosto não se discute. Importante falar que isso é algo que faz parte da construção de todas as pessoas, negras ou brancas. Recentemente fiz uma atividade com crianças em sala de aula, onde elas deveriam se desenhar como se viam. A maior parte das crianças negras (principalmente as meninas, pois os meninos tem um referencial que vem dos jogadores de futebol) se desenharam brancas, loiras, de cabelos lisos. O desenho destoava claramente do que era visto, mas ela se viam assim! E por que? Por que simplesmente elas acham pessoas brancas mais bonitas? Acredito que não. Isso ocorre porque o padrão que utilizamos ao falar de beleza é o padrão europeu.

Se isso não for algo em debate cotidiano, vamos continuar criando uma sociedade racista, onde pessoas lutam contra seu corpo para se encaixar dentro dos padrões. Do cabelo à ponta do pé, quem tem o direito de dizer o que é bonito?

Alguns links de matérias que falam sobre esse tema:

Cadê as negras nas revistas adolescentes?  -  Blog "Escreva, Lola, Escreva"
Uma história que nunca ninguém contou  - Blog "Cultura Upload"

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

29 de janeiro - Dia Nacional da Visibilidade Trans

Um dia pra ser mais do que celebrado! Acordei já pensando nesse dia, e com uma vontade louca de escrever uns versos. Não sou poeta, mas o dia merece toda e qualquer homenagem!

Nasci pessoa, me fizeram gênero
Nasci com pele, me cobriram com roupa
Uma imposição tão louca
Que tornou meu tempo efêmero

Cresci pres@ entre azuis e rosas
Cadê laranja, cadê amarelo, cadê preto?
Vestido e sexto sentido?
Tênis e pênis?

Não se atreva a raspar meu cabelo
Raspe-me os pelos do peito
Descruza minhas pernas e
Não ouse me fazer sensível

Vestir a cueca ou o samba canção
Fio dental, calçola, calção
Calçar salto alto tamanho 43
Vou tornar-me pessoa outra vez



Um beijo pra quem é trans!
Imagem retirada da página "Transexualismo da Depressão"


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Natural ou adquirido?


               Existe um debate que sempre surge quando pessoas decidem falar sobre a bi/homossexualidade: é algo natural ou adquirido? Enquanto cada um defende seu ponto de vista, percebemos que a dúvida subliminar é outra: por que existem pessoas bi e homossexuais? Esse questionamento demonstra que ainda não ultrapassamos o debate do por que, e acabamos por nos deter em uma dicotomia que pode mais retroceder do que avançar em termos de direitos civis e humanos.

            Nossa sociedade se organiza em polarizações: certo ou errado, bem ou mal, moral ou imoral, normal ou anormal, etc. Para organizarmos nossos conceitos dentro destas “caixinhas” recorremos ao padrão estabelecido. No caso da sexualidade, existe a concepção de que a heterossexualidade é normal. Dessa forma, outras sexualidades são colocadas como anormais, sendo então necessário se compreender por que elas existem; por que fogem ao padrão.

            Essa questão está presente não só no discurso daqueles que vão contra aos direitos da população LGBT, mas também no discurso dos defensores. Muitas vezes, na luta por direitos, recorremos à explicação naturalista da sexualidade, com frases como “as pessoas nascem gays” ou “não é uma opção”. Analisando esse discurso, podemos imaginar então que caso fosse uma opção, poderia ser combatido. Caso fosse algo adquirido socialmente, a luta por direitos seria invalidada. E este é o argumento dos que se colocam contrários: a homossexualidade é aprendida, pois o único estado sexual natural do sujeito é a heterossexualidade, pois somente através dela a espécie pode se propagar. Enfim, argumento ineficaz e que não merece resposta, mas devemos nos ater à justificativa para a negação de direitos: sendo a homossexualidade adquirida, então a pessoa está escolhendo não ter direitos. A resposta ao argumento da “sexualidade adquirida” deve ser o da “sexualidade inata”? Se a resposta for sim, então seremos contra uma série de direitos que pessoas que interagem socialmente e adquirem certas características possuem. Por exemplo: se defendermos que todo direito deve ser pautado em característica inata, pessoas tatuadas então deveriam ser discriminadas ao tentar uma vaga de emprego, pois não nasceram com tatuagens, adquiriram ao longo do tempo. (Talvez o exemplo pareça muito simplista, mas foi o que me surgiu no momento rs.) Um outro exemplo: pessoas religiosas não nascem assim, adquirem sua religiosidade em sua interação social. Isso é motivo para impedir pessoas religiosas de terem seus direitos assegurados? Afinal, cada religioso acredita ter em sua religião a resposta para a mais “natural” das questões: a criação do mundo. Logo, cada religião acredita que sua crença corresponde à verdadeira natureza humana. Porém existem diversas religiões, e imaginem como seria se cada uma resolvesse impedir que adeptos de religiões diferentes a sua tivessem direitos civis assegurados. Na verdade não precisamos imaginar muito, temos exemplos reais de atitudes desse tipo.

            Outro ponto a ser destacado é o do propósito dos estudos e pesquisas científicas que pretendem afirmar uma das opções para a existência da bi/homossexualidade. O que pretende uma pesquisa que se dedica a achar um componente biológico que justifique essa existência? Existem outras características que podemos ter de forma inata, e que nem por isso são consideradas benéficas. Desejamos saber a origem (médica) daquilo que possuímos, caso seja algo que desejamos nos livrar. Existem pesquisas que se dedicam a investigar vestígios de câncer no DNA das pessoas, podendo então evitar que essas pessoas venham a desenvolver essa patologia. Existem pesquisas que já comprovaram que se você tem histórico de doenças cardiológicas na família, tem mais chances de ter problemas no coração. Geralmente é indicado que essas pessoas já comecem um acompanhamento mais cedo, para que os primeiros indícios sejam detectados e possam ser combatidos. Mas não vemos uma pesquisa para saber por que alguém nasce cabelo liso (talvez façam para descobrir por que alguns nascem com cabelo crespo, pois o padrão é liso), ou por que alguns gostam mais de vermelho, ou mais de azul, quem sabe amarelo.  São coisas que não são pertinentes para que alguém venha a desenvolver uma pesquisa para saber a origem genética. Apenas vivemos com pessoas que tem preferências diferentes em relação a cor, comida, música, roupas, etc. Mas precisamos saber o que tem de diferente na biologia da pessoa que gosta de alguém do mesmo sexo. Talvez para que se crie uma vacina, um tratamento. Se fosse algo irrelevante não seriam feitas pesquisas científicas. Da mesma forma, os cientistas sociais que se preocupam em pesquisar de forma a afirmar que a bi/homossexualidade é adquirida, também tem um propósito. Vemos aí a tal “psicologia cristã” que pretende curar gays. O ponto é que pode até existir pesquisas sobre coisas que aparentemente não tem importância, como ter cabelo liso ou gostar da cor amarela, mas as que ganham maiores financiamento e notoriedade na mídia, chegando a nós através dos “fantásticos” da vida, são as relacionadas a características que queremos extinguir. Precisamos romper com essa falsa neutralidade da ciência. A “psicologia cristã”, por exemplo, não é neutra, pois já parte da concepção de que a homossexualidade é algo que precisa ser curado. Não é a toa que surgiu uma campanha onde pessoas diziam: Marisa Lobo, cure meu “heterossexualismo”. Afinal, se ela propõe que a homossexualidade é passível de “cura”, ou de readequação, deve concordar que a heterossexualidade também. Mas não, a heterossexualidade para ela é o comportamento natural, e a homossexualidade é desvio, logo a segunda deve ser reorientada para a primeira e não o contrário. Qual a base dela para essa afirmação? A bíblia. E psicologia é uma ciência. Onde está a neutralidade?

            O debate precisa ser levado a outro nível. Afinal, em alguma das duas opções, o direito civil deve ser negado? Caso seja escolha, essa pessoa não deve ter seus direitos assegurados? Se for inato, isso é justificativa? Em alguns casos, chega a parecer um pedido de desculpas: “perdoe-me, mas eu nasci assim, nada posso fazer”, como se estivéssemos infelizes por termos uma orientação bi/homossexual, e quiséssemos mudar essa realidade. A verdade é que existe em certa instância uma “escolha”, a partir do momento em que decidimos viver nossa sexualidade como a sentimos. Isso não se dá de forma fácil ou simples. Podemos não ter escolha ao sentirmos atração por homens ou mulheres, mas sem dúvida fazemos uma escolha em viver essa sexualidade ou não, e essa escolha é algo característico de nós, homo/bissexuais. Heterossexuais não passam pela auto-aceitação, não se percebem diferentes. Claro que estes também podem contestar o sistema vigente e as relações de exclusão, mas não precisam decidir se devem ou não viver sua sexualidade, pois ela é completamente aceita. A visibilidade homossexual não é algo muito antigo, e em tempos onde a repressão era muito mais agressiva as pessoas não podiam assumir sua homo/bissexualidade. Deixavam de sentir desejo por pessoas do mesmo sexo? Não, porém não se permitiam ter tais emoções por ser algo durante combatido. Isso falando de Brasil, pois em muitos países do mundo essa ainda é uma prática constante. Quantos sujeitos escondem/esconderam sua homo/bissexualidade atrás de celibatos e casamentos de fachada? Apesar de entender que essa “escolha” é feita mediante uma série de atravessamentos históricos e sociais, temos que mostrar que a partir do momento em que decidimos viver nossa sexualidade, rompendo com culpas e medos internos e externos, fizemos uma escolha onde as opções eram permanecer oprimido ou lutar para se libertar, e escolhemos a segunda opção. Aqueles que sentem desejo/afeto homossexual e não conseguem se permitir, talvez não a façam por não superarem seus anseios, talvez consigam ou não. Mas o fato é que mostrarmos que escolhemos ir contra a maré da opressão é mostrar que não somos gays por uma questão de desejo irreprimível, mas sim por não vermos sentido em esconder nossos desejos e afetos. Não é a toa que existe o “orgulho gay”, que acredito ser a afirmação: sou gay, sinto desejo e afeto por pessoas do mesmo sexo, isso foi uma descoberta e me percebi diferente daquilo que era exigido de mim, porém compreendo que devo viver minha vida plenamente e decidi viver minha homossexualidade. Eu poderia escondê-la, eu poderia enganar pessoas do sexo oposto ao fingir me apaixonar por elas, poderia ser um ser humano frustrado sexual e afetivamente. Mas escolhi ser feliz, e não sinto culpa por me relacionar e amar pessoas do mesmo sexo/gênero.

O que a sociedade de forma geral precisa compreender é que a população LGBT existe, apesar de todo o movimento histórico contra. Existimos e não precisamos saber por que. Apenas nossa existência é fato relevante para termos nossos direitos garantidos, e não aceitarmos toda a agressão moral e física que sofremos.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Era um homem. E usava batom.

Era um homem. E usava batom. Deixe-me esclarecer de que tipo de “homem” estamos falando. Era desses, como diz o popular, com H maiúsculo. Homem em todos os sentidos: figurativo, cognitivo ou subjetivo*. E usava batom.

Começou com um pequeno brilho, discreto. Passou a tons claros, bem disfarçados. Chegou a cores escuras, brilhantes, berrantes. Hoje, mantinha nos lábios tons elegantes, combinados com a estação e cor da blusa.

Podemos imaginar a reação daqueles que o viam. Homem de batom não se vê todo dia. Corrigindo, talvez se veja, mas não acompanhado de terno e gravata. As vezes um suéter. Cabelo sempre bem penteado, cortado curto, aos moldes de executivo. Era um homem sério, de poucos (e sinceros) sorrisos. Pois bem, causava incomodo. Muitos procuravam não olhar, seguravam a curiosidade com as mãos. Outros já escancaravam sua surpresa. Chegavam até, imaginem só, a acreditar que se tratava de pegadinha, dessas de programas de TV em fim de carreira.

Era um homem sereno, respondia às perguntas com tranquilidade. Estava, quando o encontrei, na casa dos 40 anos (sem aparentar). Contou-me que passou por várias formas de reação perante à surpresa alheia. Foi agressivo, já se desculpou, já chorou. E continuou a usar batom. Fui, com talento (e desculpa) de pesquisador, entrando em sua história. Disse-me que, ao contrário do que a maioria pensa, foi desenvolver essa ideia após os 20, quase 30. Olhou-se no espelho um dia, e resolveu tentar. Deixou claro que era um dia comum. Conforme explicou a alguns anos atrás, para um tal psicólogo com cara de macaxeira e sotaque paulista, não havia sofrido nenhum trauma, nenhuma desilusão amorosa. Mantinha, inclusive, um namoro que já passava do tempo de virar casamento. Problema formado! A moça, conclua, teve a pior das reações. Talvez a única, visto a gravidade da situação. Quis romper o namoro, quis fugir, quis mata-lo, tentou literalmente se matar. A sogra, pobre senhora, recorreu aos santos. O cunhado, rapaz de modos inclinados à feminilidade, mas que não usava batom (ao menos não perante todos), decidiu expor por ele um desejo guardado. Foi uma reviravolta. Acuado, tentou se livrar do novo hábito. Primeiro por conta própria. Fracassou.

Depois de ver, pela primeira vez, sua imagem refletida com os beiços coloridos, era impossível encarar aquela palidez labial. Em momentos de poesia e embriaguez, comparava seus lábios a um lustre, e o batom a uma lâmpada. Comparação brega, conforme podemos perceber, Mas sincera. Logo não podia imaginar ver seu rosto na escuridão de um lustre-boca sem iluminação-batom.

Percorreu, após insistência da namorada, que estava sendo obviamente influenciada pela mãe, igrejas de mais variados cultos. Ele, homem de pouca fé. Acreditava em Deus, mas nunca se preocupava muito com isso, foi bombardeado com ameaças de sofrimento pós-vida, castigos divinos. Queimaria no inferno! “Que era vermelho, bonita cor”, disse ele. Não obteve resultado satisfatório.

Dali até mesmo outras religiões foram consultadas. Descobriu ter encosto de pomba gira. Descobriu ser filho da deusa egípcia Ísis, e que seu signo japonês era o coelho. Viu sua mão virar livro, e ser lida avidamente. Estamos falando de desespero, caro leitor. E a fé é amiga de infância dos desesperados. E dos carentes, mas essa é uma outra história.

Nada resolvendo o problema, passaram à ciência. Foram consultados psicólogos, psiquiatras, analistas, neurologistas, massagistas e prostitutas (que são mestres na ciência da alma masculina). Estas últimas foram as que ajudaram na compreensão. Após meia horinha (bem cobrada) com o paciente, Brena, mulher de corpo escultural e rosto contrário, disse à família: “Com batom ou sem batom, esse é homem em todo o conteúdo.” E virando-se à namorada, disparou: “preocupe-se mais com o pau e menos com a boca.”

Casou, teve filhos. É feliz. E usa batom.

Por Daniel Vieira

*Escrevi esta crônica tem uns 2 anos, e agora me lembrei e resolvi publicar. Com certeza existem erros ortográficos, mas também erros na interpretação da questão de gênero. Porém, pelo que me lembro, quis retratar como seria a reação do senso comum ao fato.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Roda de diálogo sobre gênero e sexualidade

Compartilho da opinião que a educação escolar tem um papel fundamental na luta contra a discriminação, na medida que traz para debate assuntos considerados tabus. É papel da Escola promover o reconhecimento de parcelas ditas minoritárias, e reconhecer em si a pluralidade. O reconhecimento da luta se dá através da alteridade.

O vídeo abaixo é fruto de um trabalho desenvolvido pela turma de ensino médio modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos) na Escola Politécnica Joaquim Venâncio (ESPJV-FIOCRUZ). Após diversos debates sobre temas que envolviam gênero e sexualidade, os alunos tiveram a oportunidade de conversar com Bárbara Aires, transmulher ativista.Confiram:


Confira também o blog da escola: http://sejamanguinhos.blogspot.com.br/

terça-feira, 1 de maio de 2012

Com 10 votos a 0, STF aprova cotas raciais em universidades


O STF retomou o julgamento das cotas raciais na UnB nesta quinta-feira. Foto:  Foto: Nelson Jr./SCO/STF/Divulgação
Foto: Foto: Nelson Jr./SCO/STF/Divulgação

Por unanimidade, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consideraram constitucional o sistema de cotas raciais para ingresso de alunos afrodescendentes em universidades públicas. A votação, que terminou com 10 votos favoráveis e nenhum contrário, foi encerrada por volta das 20h10 desta quinta-feira com pronunciamento do presidente da Corte, Ayres Britto. "O Brasil tem mais um motivo para se olhar no espelho da história e não corar de vergonha", disse o ministro ao proclamar o resultado.
GUSTAVO GANTOIS

O julgamento teve início na quarta-feira quando Ricardo Lewandowski, relator da ação do DEM contra o sistema de reserva de vagas da Universidade de Brasília (UnB), rejeitou o pedido do partido político e reconheceu a constitucionalidade do ingresso. O sistema da UnB prevê a destinação de 20% das vagas do vestibular a candidatos autodeclarados negros ou pardos. A universidade defendia que isso soluciona uma desigualdade histórica. O DEM, por sua vez, afirmava que o sistema fere o princípio da igualdade e ofende dispositivos que estabelecem o direito universal à educação.
Por volta das 19h, o ministro Celso de Mello deu início a sua fala, favorável ao modelo adotado desde 2004 pela Universidade de Brasília (UnB). Antes dele, Marco Aurélio considerou constitucional as cotas. Gilmar Mendes deu o sétimo voto favorável, mas disse que é necessária a revisão do modelo de cotas com uma ressalva ao voto do relator Ricardo Lewandowski.
O ministro Luiz Fux foi o primeiro a se pronunciar nesta quinta-feira. Elogiando o voto do relator feito ontem, Fux definiu que ações afirmativas ainda são necessárias em um País com desigualdades sociais tão grandes como o Brasil. "A opressão racial dos anos da sociedade escravocrata brasileira deixou cicatrizes que se refletem no campo da escolaridade. A injustiça do sistema é absolutamente intolerável", disse.
Confusão
Quase ao final de seu voto, o ministro Fux foi interrompido por um índio que protestava dentro do plenário pela inclusão da etnia nas discussões sobre o sistema de cotas. Identificado como Araju Sepeti, o índio guarani de Mato Grosso chamou os ministro de racistas e urubus e foi retirado pelos seguranças da Corte.
Após a retomada da sessão, Fux disse que "a ansiedade é o mal da humanidade" e então citou o direito dos indígenas, conforme tinha pedido o índio retirado do plenário.
A ministra Rosa Weber, por sua vez, afirmou que não se pode dizer que os brancos em piores condições financeiras têm as mesmas dificuldades dos negros, porque nas esferas mais almejadas das sociedades a proporção de brancos é maior que de negros.
"A representatividade, na pirâmide social, não está equilibrada. Se os negros não chegam à universidade, por óbvio não compartilham com igualdade de condições das mesmas chances dos brancos. Se a quantidade de brancos e negros fosse equilibrada, seria plausível dizer que o fator cor é desimportante. A mim não parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico", disse a ministra.
Já na opinião da ministra Cármen Lúcia, que votou em seguida também a favor das cotas raciais, as ações afirmativas não são as melhores opções. "A melhor opção é ter uma sociedade na qual todo mundo seja livre para ser o que quiser. Isso é uma etapa, um processo, uma necessidade em uma sociedade onde isso não aconteceu naturalmente", disse Cármen Lúcia.
Discriminação enraizada
Após um intervalo de quase 40 minutos, Joaquim Barbosa, o único ministro negro da Corte Suprema, fez um voto que não chegou a 10 minutos. Barbosa acusou que a discriminação está tão enraizada na sociedade brasileira que as pessoas nem percebem.
"Aos esforços de uns em prol da concretização da igualdade que contraponham os interesses de outros na manutenção do status quo, é natural que as ações afirmativas sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam resistência da parte daqueles que historicamente se beneficiam da discriminação de que são vítimas os grupos minoritários. Ações afirmativas têm como objetivo neutralizar os efeitos perversos da discriminação racial", disse Barbosa em seu voto.
O voto decisivo foi dado pelo ex-presidente da Corte, ministro Cezar Peluso. Interrompido por apartes dos ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa, Peluso resumiu a questão ao afirmar que as cotas são necessárias à sociedade brasileira no atual momento, mas que devem ser analisada no futuro para verificar se ainda atingem o objetivo de inserir afrodescendentes em posições de mais destaque.
"Não posso deixar de concordar com o relator que a ideia é adequada, necessária, tem peso suficiente para justificar as restrições que traz a certos direitos de outras etnias. Mas é um experimento que o Estado brasileiro está fazendo e que pode ser controlado e aperfeiçoado", votou o ministro.
Tribunal racial
O ministro Gilmar Mendes criticou o fato de as políticas de cotas da UnB adotarem exclusivamente o critério racial. Ele afirmou que a política pode ser aperfeiçoada e citou o exemplo do Prouni, programa de bolsas de estudo do governo federal, que, além da raça, leva em conta critérios sociais.
"A ideia de tribunal racial evoca a memória de coisas estranhas. Não é um modelo. Seria mais razoável adotar-se um critério objetivo de referência de índole sócio-econômica. Todos podemos imaginar as distorções eventualmente involuntárias e eventuais de caráter voluntário a partir desse tribunal que opera com quase nenhuma transparência. Se conferiu a um grupo de iluminados esse poder que ninguém quer ter de dizer quem é branco e quem é negro em uma sociedade altamente miscigenada", disse o ministro, lembrando do caso envolvendo dois gêmeos univitelinos, em que um entrou na UnB pelo sistema de cotas e o outro foi rejeitado.
Oitavo ministro a votar, Marco Aurélio Mello seguiu o mesmo raciocínio externado pelos ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Para ele, o sistema de cotas é essencial, desde que as políticas sejam temporárias. E é válida, principalmente, pelo que classificou como "neutralidade do Estado" em favor dos afrodescendentes.
"A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso. É necessário fomentar-se acesso à educação. Urge implementar programas voltados aos menos favorecidos", disse Marco Aurélio. O ministro Celso de Mello, decano da Corte, citou, em seu voto, convenções internacionais que estabelecem formas de se combater o preconceito e garantir condições de igualdade.
"As ações afirmativas são instrumentos compensatórios para concretizar o direito da pessoa de ter sua igualdade protegida contra práticas de discriminação étnico-racial. Uma sociedade que tolera práticas discriminatórias não pode qualificar-se como democrática", afirmou em seu voto.
O presidente do STF, ministro Ayres Britto, foi o último a votar. Também favorável ao sistema de cotas, Britto afirmou que os erros de uma geração podem ser revistos pela geração seguinte e é isto que está sendo feito.
"Aquele que sofre preconceito racial internaliza a ideia, inconscientemente, de que a sociedade o vê como desigual por baixo. E o preconceito, quando se generaliza e persiste no tempo, como é o caso do Brasil, por diversos séculos, vai fazer parte das relações sociais de bases que definem o caráter de uma sociedade", disse Ayres Britto.