Utilizo (quando tenho tempo rs) esse
espaço virtual geralmente para auxiliar no processo pessoal de reflexão sobre
determinados temas. Ao escrever, organizo ideias, e ao ouvir opiniões sobre o
que escrevi, tenho a oportunidade de relacionar minha visão com outras. Sabendo
que não existem verdades absolutas, esse confronto de olhares tende a ser bem
interessante.
O texto que vou colocar hoje é
fruto de uma reflexão que surgiu em minha mente através dos debates no programa
Vulva Fúcsia, do qual faço parte. Ainda mais profundamente, as ideias
apresentadas no texto começaram a ser formuladas no trabalho intitulado “Vulva
Fúcsia: pedagogizando relações de gênero e sexualidade através de recursos
midiáticos”, apresentado no X ENUDS. E futuramente as ideias que surgiram aqui
vão contribuir na minha monografia, que já deveria estar em andamento.
Adaptação cotidiana
Existem
determinadas características que nós, sujeitos, possuímos e que raramente
passam por uma consciência crítica. São aspectos encrustados nos
atravessamentos sociais, e que fazem parte do processo conhecido como “subjetividade”,
onde aquilo que somos/acreditamos ser é construído. Assim, raramente nos
perguntamos por que sentimos isso ou aquilo, ou mesmo acreditamos serem fatores
naturais, até mesmo biológicos
os responsáveis por algumas de nossas formas de ser.
O
gênero está preso a essa concepção. Raramente questionamos as formas com que a
sociedade se organiza em relação ao binarismo masculino/feminino. Nos parece
algo muito normal que uma mulher aja de determinada maneira, o homem sinta
determinados sentimentos. Inclusive questionar essa organização parece algo
como ir contra a natureza. O fato é que na construção de gênero existe muito
pouco ou nada de natural. Todas as leis que determinam as formas com que um
sujeito se comporta estão amarradas a construções sociais. Não existe nada em
nossa biologia que determine que uma mulher tenda a gostar mais de rosa, ou um
homem de azul. Nossos comportamentos são definidos de acordo com o que a
sociedade construiu ao longo do tempo, e todo esse aprendizado é dado desde muito
cedo. Talvez daí venha essa falsa compreensão natural do gênero. Afinal, não
tenho consciência de em que momento foi nos ensinado que mulher deve cruzar as
pernas e homem deve cortar o cabelo curto. São ensinamentos passados através de
experiência, raramente por lições.
Usei
no parágrafo anterior a palavra lei, pra
determinar as imposições comportamentais. Pensando bem, é uma boa expressão
para esse caso, se formos pensar que em nossa sociedade judiciária, lei é
aquilo
que, quando desrespeitada, tem como consequência uma punição. Podemos
não ter consciência de quando ou como fomos moldados dentro do gênero esperado
devido à nossa composição biológica, porém temos certa clareza de que são
regras, e que devem ser seguidas, principalmente porque somos confrontados com
modelos marginais desse sistema. Se um menino age de forma mais feminina, logo
é repreendido, não apenas pelos adultos, mas também pelos próprios colegas.
Existem aí várias formas de aprendizado, mas a meu ver a principal delas é o
aprendizado desse menino sobre a forma correta e incorreta de se comportar.
Algo que irá ter significativa representação dentro do olhar dele sobre a
sociedade.
Essa
introdução pretende chegar a um ponto principal. Algo que chamo, como forma de
organizar a ideia em uma expressão, de congruência
total de gênero. Vou recorrer agora a um trecho do trabalho do qual falei
no início da postagem:
“Espera-se que uma pessoa que nasceu com
um pênis tenha identidade de gênero masculina e orientação sexual voltada para
o sexo oposto apenas (heterossexual). Da mesma forma, espera-se que a pessoa
nascida com uma vulva se entenda em uma identidade de gênero feminina e sinta
atração por homens. O que vemos hoje é que estas “caixinhas” não são
suficientes para abranger toda a pluralidade social. Ainda assim, aqueles que
fogem a um desses quesitos são marginalizados. Logo, se você nasceu com um
pênis e se identifica com o gênero masculino, você só será aceito caso tenha
orientação sexual voltada para pessoas com vulva e que se identifiquem com o
gênero feminino. Caso sua orientação sexual seja voltada para sujeitos que
possuem o mesmo órgão genital que você, a discriminação estará presente. Outro
exemplo: você tendo nascido com uma vulva, ainda que tenha desejo sexual por
pessoas portadoras de pênis, caso sua identidade de gênero seja masculina você
também sofrerá segregação social. Assim, chamamos a essa necessidade imposta em
três níveis (órgão sexual, identidade de gênero e orientação sexual) de
congruência total de gênero. Ainda que a orientação sexual e o órgão genital
não exerçam ação natural sobre sua identidade de gênero, a premissa social
estabelece que todos devem estar em congruência de acordo com o padrão
estabelecido.”
É
preciso cuidado ao analisar as diversas nomenclaturas que povoam determinado
tema. Por exemplo: falamos em orientação sexual e identidade de gênero, e
reforçamos a necessidade de se compreender as singularidades de cada expressão.
Essa divisão inicial torna-se importante para que se possa dar conta de uma pluralidade
ainda maior. Caso não houvesse a marcação de diferença, cairíamos nas formas
tradicionais de compreensão sexual, onde uma pessoa com identidade de gênero
feminina necessariamente tende a sentir atração por pessoas com identidade de
gênero masculinas. Sabemos que isso não corresponde à realidade. Porém, ao
mesmo tempo em que é necessária a demarcação das diferenças entre as
expressões, também é de suma importância compreender que estas se flexionam.
Uma exerce influência sobre a outra, e as duas se relacionam.
O
principal dentro da expressão que trago “congruência
total de gênero”, é compreender que existem diversas premissas sociais que
pretendem resumir a uma única visão aspectos diferentes dentro de cada sujeito.
Não somos apenas um órgão sexual, e menos ainda é este que decide nossos
comportamentos e desejos. Ao nos compreendermos como sujeitos múltiplos,
dotados de diversas esferas de expressão, passamos a nos compreender melhor
como um todo. Todos os nossos aspectos se relacionam, mas não necessariamente
dentro do esperado pelo modelo social ocidental/cristão que vivemos. O que o
meio social pretende é resumir nossa singularidade ao reduzi-la em formas de
expressão já prontas, onde apenas nos adequamos para que tudo permaneça como é.