domingo, 3 de março de 2013

Do cabelo à ponta do pé, quem tem o direito de dizer o que é bonito?


Ontem, durante um bate papo com amigxs, falamos sobre o racismo nosso de cada dia, e do quanto é difícil compreender que somos uma sociedade racista. Essa compreensão pra mim é necessária pra que a gente possa analisar nossos pensamentos e atitudes, visando uma reflexão de combate, e não para simplesmente instituir o racismo. Não se trata de aceitar o racismo como parte de nós, e sim de entender que somos criados em uma realidade racista, e que só a partir da análise de nossa prática cotidiana é que podemos mudar a situação.

O Brasil é um país que tem preconceito com o preconceito. Ouvi essa frase esses dias, mas não lembro quem foi que disse ou escreveu. Cada um pode ter sua compreensão, mas eu leio da seguinte maneira: nosso país se recusa a aceitar que tem práticas discriminatórias. Quando digo nosso país, me refiro claro as pessoas que aqui moram. Acho que isso veio do mito da democracia racial, do aclamado país de mestiços, da propaganda feita do país como um lugar onde as raças convivem pacificamente. Enfim, podem ter muitas origens, mas é um fato. Nosso pensamento tem sempre um mas.

E nessa negação, ontem surgiram algumas frases interessantes. Vou pegar uma delas pra comentar agora:

“Raramente vemos um negro bonito”

Para ir para o trabalho eu posso fazer alguns trajetos. Em um deles, passo por vários municípios da baixada fluminense (RJ). Do ônibus eu vejo a população nas ruas, andando, comendo, conversando, trabalhando, etc. Ao mesmo tempo vejo outdoors, cartazes, placas, anúncios. E o que vejo é uma tremenda contradição. Ao mesmo tempo em que na rua vemos uma maioria gigantesca de pessoas negras (sei que é impossível classificar alguém como negrx, e que existe aí uma questão de identidade cultural, mas digo em relação ao visível, ou mais especificamente à cor da pele), nas imagens de propaganda as pessoas são quase sempre brancas. Na maioria das vezes é branca, loira e dos olhos azuis. O modelo de casal do comercial de margarina ainda prevalece. Na placa do dentista, tem uma família composta por homem/mulher/criança, todos brancos e loiros, com um sorriso “perfeito”. Sei que existem exceções, onde negros também são representados, mas isso é o que são: exceções. É absurdo você ver que na maioria dos veículos de informação o padrão de beleza ainda é a pessoa branca, quando nas ruas a maioria da população é negra.
Campanha contra propaganda de alisantes
Pois bem, o que isso tem a ver com a frase que eu coloquei ali em cima? Tudo! De onde nossos padrões vem? Temos a ideia de que nossas preferências nascem conosco, são naturais. E acabamos não dando conta de que os padrões de beleza e comportamento são construídos histórica e socialmente. Nas revistas, existe um modelo de beleza sendo veiculado, e é esse modelo que nos acompanha, que constitui nossos gostos. Temos um referencial de beleza negra? Claro que temos alguns, aos poucos vemos uma mudança tímida nesse esquema. Temos mulheres negras que conseguiram ultrapassar o limite no carnaval. Aparecem em revistas durante o ano, são modelos de beleza. Mas são ainda exceções.

Um caso que ilustra esse nosso racismo é o do “mendigo gato”. Nada mais que um mendigo loiro de olhos azuis. Quantos moradores de rua existem no Brasil? Milhares, sem dúvida. Passamos por vários todos os dias. Por que de repente uma dessas pessoas chama a atenção de todo um país, que fica abismado com o fato dele morar na rua? Por que ele era branco, loiro e tinha olhos azuis. Simples. As pessoas ficaram chocadas: como pode um homem tão bonito ser mendigo? Todos os outros são esquecidos, todos os mendigos “feios” são postos de lado. Mas essa maioria de mendigos feios é branca ou negra?

Enfim, nossos padrões de beleza são racistas. E temos que levar isso à consciência crítica para estar atento e não reproduzir esse tipo de pensamento. Se hoje alguém diz que raramente vemos uma pessoa negra bonita, é porque nossa sociedade estabeleceu que o padrão de beleza é o da pessoa branca. E nós vamos levando a vida achando que o fato de acharmos geralmente pessoas brancas mais bonitas do que negras se deve a um fator natural. É gosto, e gosto não se discute. Importante falar que isso é algo que faz parte da construção de todas as pessoas, negras ou brancas. Recentemente fiz uma atividade com crianças em sala de aula, onde elas deveriam se desenhar como se viam. A maior parte das crianças negras (principalmente as meninas, pois os meninos tem um referencial que vem dos jogadores de futebol) se desenharam brancas, loiras, de cabelos lisos. O desenho destoava claramente do que era visto, mas ela se viam assim! E por que? Por que simplesmente elas acham pessoas brancas mais bonitas? Acredito que não. Isso ocorre porque o padrão que utilizamos ao falar de beleza é o padrão europeu.

Se isso não for algo em debate cotidiano, vamos continuar criando uma sociedade racista, onde pessoas lutam contra seu corpo para se encaixar dentro dos padrões. Do cabelo à ponta do pé, quem tem o direito de dizer o que é bonito?

Alguns links de matérias que falam sobre esse tema:

Cadê as negras nas revistas adolescentes?  -  Blog "Escreva, Lola, Escreva"
Uma história que nunca ninguém contou  - Blog "Cultura Upload"