Era um homem. E usava batom.
Deixe-me esclarecer de que tipo de “homem” estamos falando. Era desses, como
diz o popular, com H maiúsculo. Homem em todos os sentidos: figurativo,
cognitivo ou subjetivo*. E usava batom.
Começou com um pequeno brilho,
discreto. Passou a tons claros, bem disfarçados. Chegou a cores escuras,
brilhantes, berrantes. Hoje, mantinha nos lábios tons elegantes, combinados com
a estação e cor da blusa.
Podemos imaginar a reação
daqueles que o viam. Homem de batom não se vê todo dia. Corrigindo, talvez se
veja, mas não acompanhado de terno e gravata. As vezes um suéter. Cabelo sempre
bem penteado, cortado curto, aos moldes de executivo. Era um homem sério, de
poucos (e sinceros) sorrisos. Pois bem, causava incomodo. Muitos procuravam não
olhar, seguravam a curiosidade com as mãos. Outros já escancaravam sua
surpresa. Chegavam até, imaginem só, a acreditar que se tratava de pegadinha,
dessas de programas de TV em fim de carreira.
Era um homem sereno, respondia às
perguntas com tranquilidade. Estava, quando o encontrei, na casa dos 40 anos
(sem aparentar). Contou-me que passou por várias formas de reação perante à
surpresa alheia. Foi agressivo, já se desculpou, já chorou. E continuou a usar
batom. Fui, com talento (e desculpa) de pesquisador, entrando em sua história.
Disse-me que, ao contrário do que a maioria pensa, foi desenvolver essa ideia
após os 20, quase 30. Olhou-se no espelho um dia, e resolveu tentar. Deixou claro
que era um dia comum. Conforme explicou a alguns anos atrás, para um tal
psicólogo com cara de macaxeira e sotaque paulista, não havia sofrido nenhum
trauma, nenhuma desilusão amorosa. Mantinha, inclusive, um namoro que já
passava do tempo de virar casamento. Problema formado! A moça, conclua, teve a
pior das reações. Talvez a única, visto a gravidade da situação. Quis romper o
namoro, quis fugir, quis mata-lo, tentou literalmente se matar. A sogra, pobre
senhora, recorreu aos santos. O cunhado, rapaz de modos inclinados à
feminilidade, mas que não usava batom (ao menos não perante todos), decidiu
expor por ele um desejo guardado. Foi uma reviravolta. Acuado, tentou se livrar
do novo hábito. Primeiro por conta própria. Fracassou.
Depois de ver, pela primeira vez,
sua imagem refletida com os beiços coloridos, era impossível encarar aquela
palidez labial. Em momentos de poesia e embriaguez, comparava seus lábios a um
lustre, e o batom a uma lâmpada. Comparação brega, conforme podemos perceber,
Mas sincera. Logo não podia imaginar ver seu rosto na escuridão de um
lustre-boca sem iluminação-batom.
Percorreu, após insistência da
namorada, que estava sendo obviamente influenciada pela mãe, igrejas de mais
variados cultos. Ele, homem de pouca fé. Acreditava em Deus, mas nunca se
preocupava muito com isso, foi bombardeado com ameaças de sofrimento pós-vida,
castigos divinos. Queimaria no inferno! “Que era vermelho, bonita cor”, disse
ele. Não obteve resultado satisfatório.
Dali até mesmo outras religiões
foram consultadas. Descobriu ter encosto de pomba gira. Descobriu ser filho da
deusa egípcia Ísis, e que seu signo japonês era o coelho. Viu sua mão virar
livro, e ser lida avidamente. Estamos falando de desespero, caro leitor. E a fé
é amiga de infância dos desesperados. E dos carentes, mas essa é uma outra
história.
Nada resolvendo o problema,
passaram à ciência. Foram consultados psicólogos, psiquiatras, analistas,
neurologistas, massagistas e prostitutas (que são mestres na ciência da alma
masculina). Estas últimas foram as que ajudaram na compreensão. Após meia
horinha (bem cobrada) com o paciente, Brena, mulher de corpo escultural e rosto
contrário, disse à família: “Com batom ou sem batom, esse é homem em todo o
conteúdo.” E virando-se à namorada, disparou: “preocupe-se mais com o pau e
menos com a boca.”
Casou, teve filhos. É feliz. E usa batom.
Por Daniel Vieira
*Escrevi esta crônica tem uns 2 anos, e agora me lembrei e resolvi publicar. Com certeza existem erros ortográficos, mas também erros na interpretação da questão de gênero. Porém, pelo que me lembro, quis retratar como seria a reação do senso comum ao fato.