segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Era um homem. E usava batom.

Era um homem. E usava batom. Deixe-me esclarecer de que tipo de “homem” estamos falando. Era desses, como diz o popular, com H maiúsculo. Homem em todos os sentidos: figurativo, cognitivo ou subjetivo*. E usava batom.

Começou com um pequeno brilho, discreto. Passou a tons claros, bem disfarçados. Chegou a cores escuras, brilhantes, berrantes. Hoje, mantinha nos lábios tons elegantes, combinados com a estação e cor da blusa.

Podemos imaginar a reação daqueles que o viam. Homem de batom não se vê todo dia. Corrigindo, talvez se veja, mas não acompanhado de terno e gravata. As vezes um suéter. Cabelo sempre bem penteado, cortado curto, aos moldes de executivo. Era um homem sério, de poucos (e sinceros) sorrisos. Pois bem, causava incomodo. Muitos procuravam não olhar, seguravam a curiosidade com as mãos. Outros já escancaravam sua surpresa. Chegavam até, imaginem só, a acreditar que se tratava de pegadinha, dessas de programas de TV em fim de carreira.

Era um homem sereno, respondia às perguntas com tranquilidade. Estava, quando o encontrei, na casa dos 40 anos (sem aparentar). Contou-me que passou por várias formas de reação perante à surpresa alheia. Foi agressivo, já se desculpou, já chorou. E continuou a usar batom. Fui, com talento (e desculpa) de pesquisador, entrando em sua história. Disse-me que, ao contrário do que a maioria pensa, foi desenvolver essa ideia após os 20, quase 30. Olhou-se no espelho um dia, e resolveu tentar. Deixou claro que era um dia comum. Conforme explicou a alguns anos atrás, para um tal psicólogo com cara de macaxeira e sotaque paulista, não havia sofrido nenhum trauma, nenhuma desilusão amorosa. Mantinha, inclusive, um namoro que já passava do tempo de virar casamento. Problema formado! A moça, conclua, teve a pior das reações. Talvez a única, visto a gravidade da situação. Quis romper o namoro, quis fugir, quis mata-lo, tentou literalmente se matar. A sogra, pobre senhora, recorreu aos santos. O cunhado, rapaz de modos inclinados à feminilidade, mas que não usava batom (ao menos não perante todos), decidiu expor por ele um desejo guardado. Foi uma reviravolta. Acuado, tentou se livrar do novo hábito. Primeiro por conta própria. Fracassou.

Depois de ver, pela primeira vez, sua imagem refletida com os beiços coloridos, era impossível encarar aquela palidez labial. Em momentos de poesia e embriaguez, comparava seus lábios a um lustre, e o batom a uma lâmpada. Comparação brega, conforme podemos perceber, Mas sincera. Logo não podia imaginar ver seu rosto na escuridão de um lustre-boca sem iluminação-batom.

Percorreu, após insistência da namorada, que estava sendo obviamente influenciada pela mãe, igrejas de mais variados cultos. Ele, homem de pouca fé. Acreditava em Deus, mas nunca se preocupava muito com isso, foi bombardeado com ameaças de sofrimento pós-vida, castigos divinos. Queimaria no inferno! “Que era vermelho, bonita cor”, disse ele. Não obteve resultado satisfatório.

Dali até mesmo outras religiões foram consultadas. Descobriu ter encosto de pomba gira. Descobriu ser filho da deusa egípcia Ísis, e que seu signo japonês era o coelho. Viu sua mão virar livro, e ser lida avidamente. Estamos falando de desespero, caro leitor. E a fé é amiga de infância dos desesperados. E dos carentes, mas essa é uma outra história.

Nada resolvendo o problema, passaram à ciência. Foram consultados psicólogos, psiquiatras, analistas, neurologistas, massagistas e prostitutas (que são mestres na ciência da alma masculina). Estas últimas foram as que ajudaram na compreensão. Após meia horinha (bem cobrada) com o paciente, Brena, mulher de corpo escultural e rosto contrário, disse à família: “Com batom ou sem batom, esse é homem em todo o conteúdo.” E virando-se à namorada, disparou: “preocupe-se mais com o pau e menos com a boca.”

Casou, teve filhos. É feliz. E usa batom.

Por Daniel Vieira

*Escrevi esta crônica tem uns 2 anos, e agora me lembrei e resolvi publicar. Com certeza existem erros ortográficos, mas também erros na interpretação da questão de gênero. Porém, pelo que me lembro, quis retratar como seria a reação do senso comum ao fato.

Um comentário:

Tamires Carvalho disse...

Dani, certamente amei sua crônica!
A sociedade em que vivemos é coberta de moldes e recheada de pré conceitos. Nem tudo é o que parece ser!
O que nossa sociedade não entende é que "o que é" simplesmente não importa, porque isso não define suas ações ou seu caráter.. Sem contar que não é da conta de ninguém.
A única frase que me vem a cabeça nesse momento, a fim de concluir minha frase, é um trecho de uma música do Kid Abelha: "Seja como for, mas seja!"